Hélen Queiroz: “Entre “prólogo” e “epílogo”, o espetáculo de Chronos”, e a crítica ao “Cenário Implícito”, de Talita Feuser

No “Cenário implícito” de Talita Feuser, há a imensidão do cosmos e o planeta placenta, onde seu corpo-poeta pulsa no mar aberto da linguagem. Há também pássaros, peixes, amores, frutos ácidos, metáforas e metástases a revelarem este mundo denso regido por Chronos. E ela, atriz-poeta-acrobata nesse tempo-espaço, sabe que “as palavras moram em lugares absurdos”, que há “subdivisões atômicas das palavras”, que “as palavras guardam subpalavras”, que é possível “ver poesia em coisas mortas” e até mesmo “em coisas presas nos dentes”. Confessa estar “cheia de palavras borbulhando em lugares absurdos!”, revela um mergulho profundo nos dramas humanos, nas entranhas da dor, no delírio do prazer, na revolta diante das agruras da sociedade perfurada, fraturada, esmagada por opressores. Por isso, ouso dizer que “seus olhos estão além da poesia”, pois seus poemas extrapolam a linguagem poética e conduzem o leitor ao universo filosófico, político, metafísico, fazendo ecoar a polifonia inscrita na vida, trazendo à superfície as dores e as delícias do existir. Seus versos urram “esse silêncio de morte de um povo sem norte” e logo nos atacam com a lâmina-pergunta: “ninguém vai ferver com essa porra explodindo?”

Denuncia que “estamos nós/nascidos na América/traçando as nossas rotas de fuga”, mas, de súbito, seus versos também trazem um sopro de esperançar:

quem sabe um dia
ainda viveremos
a juventude sonhada por Che

Suas palavras escalam as montanhas da pauta e “neste rascunho infinito” a poeta escreve seus passos, seu percurso poético, seu “cenário implícito”, desvelando as coxias do seu “infinito particular”. Para a autora, “navegar é uma escolha, mergulhar mais ainda”, e ela o faz sem escafandros e medos no mar das palavras, onde “tudo escoa”, tudo ecoa, buscando a foz da poesia (ou seria um delta?) a jorrar no oceano da literatura.

Em seus poemas, os peixes, os pássaros perpassam indagações sobre a condição humana; a poeta inveja a liberdade celeste e oceânica concedida às aves e aos anfíbios… revela a dificuldade de manter os pés na terra, enquanto o planeta é devorado pelo capital selvagem e, por fim, escancara que estamos todas e todos presos à nossa “humanidade oblíqua”… nos lemos em seus versos:

não se sabe o destino do porvir
tampouco sei o que sonham os pássaros

que dissidência ousam?
de que dissidiam ao cruzarem o céu?
sabem que estão em constante ato de abandono?

uma ironia da existência

são livres
por que aceitam a sua condição
caçoam de mim, que teimo com as horas
que ignoro o tempo
como se eles mesmos tivessem inventado as marcações

[…]

para manter a sanidade
para não enlouquecer
para compreender os pássaros

E declara ainda:

nunca tive tantas camadas descobertas
nunca me descasquei tanto
nunca estive tão perto de me besuntar com os meus próprios líquidos

Em seu cenário (também explícito), a atriz-poeta-bailarina narra sua “dança da solidão” cantada por Paulinho da Viola, que talvez seja a “luta com as palavras” versada por Drummond.

escorro em espirais de uma dança estranha
porém inteiramente minha
danço sozinha

Seu livro traz, com grande força, uma reflexão corajosa sobre o mistério de uma permanente “nascença” que nos esculpe aos soprar dos ventos e dias… e por isso desafia, dilacera e arrebata o cúmplice-leitor.

ainda tentando decifrar o ato de gerar a mim mesma
ainda tentando desvendar que mistério é esse — a nascença

Entre seus versos, há também sopros que oxigenam e aliviam pulmões e pensamentos…

o berço do mundo me ninando

Nos defrontamos com sua criança interior a desafiar a mulher que nasce balzaquiana dentro dela — a criança que permanece em nós, como alerta Walter Benjamim, a (re)nascer na vida adulta. Deste parto, menina e mulher, amalgamadas, alçam voo, encaram o abismo e pousam num chão de estrelas estilhaçadas. A artista, então, recolhe os cacos luminosos que compõem suas múltiplas faces: a arte, o ser mulher, o palco, a pauta. A atriz-poeta que ama, escreve, interpreta, pulsa, sangra e renasce a cada…

encarar
o abismo
pra ver se lá
tem chão

Ao arriscar o voo-mergulho, encontra a “imensidão poética que há em nossos corpos vivos”, escancarando que

somos bichos bem partidos
tentando juntar nossas partes
para encontrar o todo

E vocifera:

há que se provocar os poetas
lhes cutucar com a varinha
para que vomitem a sua fúria

Os poemas de Talita afetam, emocionam, provocam. Sobretudo impulsionam a

decorar a reza
dos que descobrem a vida
a cada solstício de inverno

Seus versos dão pistas de como descascar as peles da dor existencial e nos condecora com a esperança:

nós teremos tempo
de encontrar a nascente
para que nunca seque
um poema nasce
enquanto o mundo
e v a p o r a
[já vai chover!]

E neste Cenário proposto por Talita Feuser compreendemos nosso corpo como “o epicentro da nossa Terra trêmula” e dele saímos com a certeza de que

não há ruína que sobreviva a uma nova construção

Essa moça chegou para cravar seu nome na poesia brasileira contemporânea. Evoé!


Aqui apresentamos com exclusividade “o universo em quatro paredes“, do livro Cenário Implícito de Talita Feuser. Escolhemos especialmente o texto para compor o próximo caderno de lusofonias da Philos de verão. Sem mais delongas:

o universo em quatro paredes

as palavras moram em lugares absurdos. o gato preto pendurado na parede esconde a palavra medo. esconde ou liberta? eu não sei. escrever é o que me liberta, estou presa em mim e não sei para onde ir comigo mesma. a lua vaza linda pela janela, mas o Universo é aqui. é aqui que tudo começa e se encerra, expande-se e se encolhe. os cientistas já decidiram? eu não sei. o Big Bang aconteceu há 30 anos. Chaplin me olha de canto de olho, ele me desafia! você foi um gênio, Chaplin, eu sou apenas alguém tentando sobreviver. alguém tentando sobreviver nesse tabuleiro de xadrez. as palavras guardam subpalavras, é com elas que você deve tomar cuidado. xeque-mate. por que alguém se interessaria por palavras escondidas nesse mundo de palavras vomitadas? preste atenção às palavras nucleares, às subdivisões atômicas das palavras. o átomo não era indivisível? os cientistas já decidiram? eu não sei. guerras nucleares acontecem todos os dias em todos os lugares, não é mesmo? sim, sempre, mas a única guerra que você pode resolver é esta aqui. as outras você pode tentar evitar. eu me interesso. quê? por palavras, eu me interesso. você nem está aqui. é aqui que tudo começa e se encerra, lembra? eu também estou aqui. sim, de acordo com a física quântica você está. você não entende nada de física quântica. não mesmo, mas acho bonito. a toalha ainda molhada guarda células mortas e um retrato do meu corpo nu. um retrato de minhas palavras biológicas. a busca, persona, o outro lado da rua, aqueles moços… não há coerência, não há sobre o que escrever. esta cama fria, o chá que já se bebeu, poesia um, dois, três. Pessoa. pessoas. eu me retiro. a imagem da Frida transformada em pop art é uma afronta, mas a gente gosta e compra porque até o Papa é pop e tudo bem. será que há palavras escondidas embaixo do tapete vermelho? palavras sussurradas, do tipo: eu queria fazer sexo agora… shiuuu… estou cheia de palavras borbulhando em lugares absurdos! eu sou uma champagne da década de trinta esquecida em Paris. quanta prepotência! como ousa? as palavras se escondem em lugares absurdos porque seria mais absurdo dizê-las. mas eu digo, que se expanda: Bang!


Talita Feuser (1986), nasceu em Paranavaí (Paraná), quando o sol estava sob o signo de gêmeos. Poeta, atriz, narradora, advogada, dramaturga, compositora e videoartista, graduou-se em direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), e em teatro pela Escola Municipal de Teatro de Londrina (EMTL), atualmente mora no Rio de Janeiro. Participou da 16ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), na Casa Philos – mesa sobre visibilidades e visualidades: mulheres em cena. “Cenário Implícito” é também um projeto de videoarte em parceria com amigos artistas, com trabalhos veiculados em festivais como Maldito (Espanha), International VideoPoetry (Grécia), Lift Off-Sessions (Reino Unido), Weimar Poetry Film Award (Alemanhã), Linguagem em foco (Rio de Janeiro).

Hélen Queiroz (Rio de Janeiro), é poeta e doutora em Educação pela UFRJ, pesquisadora na área de linguagem e literatura do LEDUC (Laboratório de Estudos de Linguagem, Leitura, Escrita e Educação – UFRJ).

As fotografias que acompanham o texto são de Javier Abi-Saab.


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Publicado por:Philos

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